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“FALAR SOBRE LUTO É FALAR DELA”

Nick Nagari, 25 anos, carioca, trans não binário e bissexual, conta sobre o relacionamento com sua mãe Regina Freitas.

05/07/2022 18h30

Depoimento colhido por Flavia Keretch

Sempre tive uma relação muito complicada com a minha mãe, ela era cristã conservadora. E na adolescência já me entendia como LGBT. Desde criança não performava a feminilidade e não me enquadrava no estereótipo feminino. Tinha muito medo de não dar orgulho para ela, não ser a pessoa que ela queria que eu fosse.

Quando me entendi LGBT, que era bissexual e assumi isso para minha mãe, foi muito complicado. No dia que eu falei, ela fingiu que nada aconteceu. Seis meses depois comecei a namorar uma garota e ela chorou por semanas, decepcionada. Familiares me falaram que ela ia entrar em depressão por minha causa, uma coisa muito pesada. Nessa época também comecei a me descobrir trans, então eu pensava “Nossa quando ela souber disso... acabou. Se ela já está descontente agora, imagina no futuro”.

Aos poucos minha mãe começou a se abrir mais, passou a desenvolver uma boa relação com a minha namorada. No ano seguinte elas já estavam muito próximas, foi uma reviravolta. E eu percebi que ela entendeu, que se gostava de mim, tinha que me respeitar por completo. Contudo, em 2018 minha mãe decidiu votar no Bolsonaro. E foi muito difícil para eu lidar, ela estava cega, como uma lavagem cerebral. Não era a mulher que me criou, que me ensinou a ser bom com todo mundo, era outra pessoa.

Foi aí que decidi sair de casa. Fui morar com uma amiga e a minha namorada na época. Ainda via minha mãe com frequência, mesmo tendo cortado esse contato diário. Em 2020 com a pandemia e o Bolsonaro falando cada vez mais absurdos, minha mãe foi começando acordar, e me deu abertura para falar sobre todas as coisas horríveis que ele fazia.

Com cinco meses de pandemia eu fui demitido, no mesmo dia ela sofreu acidente no ônibus e machucou a coluna, assim fiquei um mês com ela para ajudar. Foi um período muito difícil, mas nos aproximamos novamente. Comecei a criar conteúdo na internet sobre bissexualidade e ela me acompanhou desde o início. Comemorou comigo cada conquista. Tenho prints dela falando “parabéns, estou muito orgulhosa de você” e isso mexeu muito comigo porque realmente passei a minha vida inteira pensando que ela nunca teria orgulho de mim.

Em 2019 mudei de nome oficialmente e pedi para que ela parasse de me chamar pelo antigo. De lá para cá ela parou, me chamava só de filha. No final de 2020, me chamava no masculino às vezes. Então de Nick. Na pandemia nós fizemos isolamento total até setembro de 2021, mas a minha mãe tinha vários problemas de saúde e íamos para o hospital toda hora. Em outubro ela ficou praticamente dois meses, internada antes de falecer. Foi com certeza a pior fase da minha vida.

É muito doido se sentir meio pai da sua mãe, porque ela era a pessoa assustada e eu era quem estava dando segurança. Falei “Você confia em mim” e ela falou “Confio” e eu disse “Então você sabe que eu tô fazendo o melhor para você”. Essa foi nossa última conversa. Nesse dia eu senti uma paz, senti que tinha feito tudo que eu podia fazer e que ela estava no melhor lugar possível.

Quando me deram a notícia que ela faleceu a primeira coisa que passou na minha cabeça foi me sentir injustiçado, porque justamente agora que estávamos nessa fase tão boa da nossa relação, ela se foi. Após o baque, me senti na obrigação de comunicar os meus parentes sobre sua morte. Foi aí que percebi que não sabia como agir, nem por onde começar.

Porque é isso, nós não falamos sobre morte então não sabemos o que fazer quando alguém morre. Uma das coisas que me fez lidar um pouco melhor com o luto foi um ensinamento de uma amiga. Ela disse que eu iria continuar aprendendo e descobrindo coisas novas sobre minha mãe, e que nossa relação não iria morrer com ela. Pois, eu a manteria viva em minha memória, conversaria com outras pessoas sobre ela e nessas conversas a conheceria ainda mais.

Eu gosto de falar sobre luto, porque sinto que as pessoas precisam pensar sobre. O luto vem cheio de coisas: de saudade, dor, amor, raiva. E eu não quero que pensar nela seja só dor, porque minha mãe foi muito foda, ver até onde ela chegou, vê-la superando o seu preconceito, tirando foto com a bandeira Bi e contando orgulhosa para as pessoas do seu filho. Como o nosso amor realmente superou tudo. É disso que quero me lembrar.

Eu quero falar sobre isso, porque falar sobre luto é falar dela, o luto é o que me faz ser filho da minha mãe. E o luto é sempre único. Não existem fases. Cada pessoa lida de uma forma diferente. Eu estava me sentindo muito injustiçado; não queria sentir só dor; e foi um privilégio enorme ser filho de Regina Freitas. Hoje eu falo disso e é claro que me emociona, mas não fico triste, porque ela foi a minha super-heroína, aprendi muito e sinto que ela me deixou ensiná-la também.

Fonte: Instagram Nick Nagari